domingo, 9 de agosto de 2009

ESPÍRITO SANTO


Quem há de lembrar-se da velha zeladora que limpava os banheiros e varria as salas e corredores do Grupo Escolar Martins Rodrigues, em Senador Pompeu? Além de pobre, era preta. De onde veio aquela criatura? Ninguém sabe. Os moradores mais antigos da cidade se arriscam a dizer que ela procedia do maranhão ou da Bahia, "repare no jeito de ela carregar a lata d'água na cabeça".

Seu nome era Espírito Santo, pronto. Não tinha "da Silva" nem "Sousa" no sobrenome. Como se não bastasse, a nega véia era perseguida por uma professora que ameaçava jogar-lhe no olho da rua, sem dó nem piedade. Foi preciso que a doce Cristina Pessoa, ao assumir a direção da escola, apaziguasse os ânimos, feito um anjo da guarda, protegendo-a até sua aposentadoria.

Muitas vezes, deparei-me com ela, parada e em silêncio, em frente à minha casa. Ficava assim, sem falar - como era seu costume - o tempo que fosse. Não era de seu feitio incomodar. Sua comunicação com a meiga Cristina era telepática e, logo mamãe mandava que eu levasse a cesta de São Vicente de Paulo para a casa de dona Espírito Santo.

Essas cestas continham arroz, feijão e farinha ou apenas frutas, tudo coisas de lavra da fazenda de meu pai. Uma ou outra vez, a cesta ficava pesada, mamãe me incumbia de carregá-la, até sua casa. Ao chegar na porta da casinha de taipa, espantava-me com o que via - meus olhos percorriam os cômodos e, no meio daquela algazarra, ficava sem entender nada. Quase não havia móveis: um ou outro tamborete, uma mesa, pedaços de caixões e várias redes armadas, com pessoas dentro, todas enroladas em molambos de pano. Espalhados por toda a casa, havia muitos cachorros, gatos, pombos, galinhas e porcos, de onde exalava um mau cheiro que empestava o ambiente.

A casa de Espírito Santo era um mistério no meu mundo de criança. O espetáculo da convivência entre pessoas e animais, dentro do mesmo espaço físico, causava-me sobressalto. Confesso que, ao mesmo tempo em que aquela casa me atraía, ela também me repulsava. A verdade é que eu morria de medo do se aspecto, de uma certa forma, tenebroso. Tenho certeza de que esse clima de pavor mexia com todos os meninos da rua. Foi, então, que um dia, ao ver uma mulher que se desenrolava dos panos, cheia de feridas nos lábios, nariz e dedos, saí em disparada. Perguntei sobre tudo naquela casa à minha mão. Suas respostas, em tom calmo, dissiparam-me todos os receios. Aquela senhora, dizia ela, tinha um coração enorme e cheio de amor, tanto pelas pessoas, como pelos animais. Ela simplesmente recolhia cães e gatos rejeitados e os punha em abrigo. Quanto às pessoas deitadas nas redes, eram doentes de lepra, que não tinham onde passar seus últimos dias de vida, tanto por falta de assistência do estado quanto pelo preconceito da sociedade diante dessa doença incurável. Mais uma vez, fiquei assustado, mas por conta da grandeza do ser humano que era a digna dona Espírito Santo.

Assim ela era, a seu modo, procurando imitar São Francisco, o pobre de Assis. Poucas pessoas vão lembrar que, na cidade de Senador Pompeu, existiu essa senhora com tamanha solidariedade, de gestos simples, humilde e anônima, de pés descalços, com um terço nas mãos e um infinito amor pela obra de Deus.

Um comentário:

Maríllia Holanda disse...

Que lindo!
Onde é possível achar/comprar seu livro?

Parabéns..